domingo, 8 de fevereiro de 2015

ESPIRITISMO - Uma Religião Brasileira

Nas Imagens ao alto Bezerra de Menezes (esq.)  Jesus Cristo (Centro) Allan Kardec (Direita)

Allan Kardec -Codificador do Espiritismo




Sociedade Espírita Allan Kardec -Senhor do Bonfim,BA-Fundada em 1968,  na Foto seu Presidente atual Luiz Bamberg.

Uma religião brasileira
Célia da Graça Arribas
O Brasil é, nos dias atuais, um país majoritariamente católico (64,6% da população, de acordo com o Censo do IBGE de 2010). Certamente também o foi durante os períodos colonial (1530-1815) e imperial (1822-1889), quando o catolicismo era a religião oficial do Estado, o que não impediu, entretanto, a existência e o cultivo de outras crenças religiosas nativas ou trazidas da África. Mas foi somente com a proclamação da República, em 1889, e a consequente instauração de um Estado laico, que a condição política para a pluralidade religiosa brasileira se tornou realidade. Nesse novo cenário, as manifestações religiosas que divergiam do catolicismo foram se firmando e demarcando seu espaço em diferentes camadas da sociedade brasileira. Mas, apesar da liberalização oficial, o preconceito real sofrido por essas religiões e a concorrência desigual que favorecia por inércia do privilégio a Igreja Católica eram realidades flagrantes. Perseguições e repressões policiais às diversas religiões não católicas caracterizaram esse período.
Sob esse contexto, as religiões e doutrinas recém-chegadas tiveram de se articular e se organizar (teórica e institucionalmente) tendo em vista a legitimidade necessária para a sua consolidação em solo brasileiro, e desse contexto não foge a doutrina espírita. Surgida na França oitocentista em meio ao que se convencionou chamar de movimento espiritualista ou espiritualismo moderno, a doutrina espírita ou espiritismo – também conhecida no Brasil como kardecismo ou mesa branca – foi criada pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizad Rivail (1804-1869), mais conhecido pelo seu pseudônimo: Allan Kardec. Segundo Kardec, o seu trabalho teria consistido em tão somente organizar e sistematizar, ou, em suas palavras, “codificar” um corpo teórico-doutrinário que partia de alguns pressupostos indiscutíveis, tais como: (1) a existência de espíritos e a sua imortalidade, (2) a pluralidade das vidas e (3) a existência de Deus. Desse trabalho surgiram os cinco livros da “codificação espírita”: O livro dos espíritos (1857), o livro dos médiuns (1861), O Evangelho segundo o espiritismo (1864), O céu e o inferno (1865) e A gênese (1868).
Desde seu início, essa doutrina nunca foi tratada como sendo especificamente uma religião. Ela propunha entender o mundo e suas relações com o “além” de uma forma bastante inusitada, já que se definia, ao mesmo tempo, como uma doutrina filosófica, científica e religiosa. No entanto, o que se vê hoje no Brasil – notar bem: hoje – é um espiritismo em forma de religião, e uma religião praticada por 3,8 milhões de pessoas, de acordo com o Censo de 2010, o que faz do Brasil o maior país espírita do mundo.
Um país místico pela própria natureza
Sobre o Brasil incidem análises mais comuns que afirmam (ou reafirmam) o caráter religioso e místico de seu povo. Isso talvez pelo fato de abrigar muitos e diversos credos, provenientes do sincretismo entre os cultos africanos, indígenas e do catolicismo popular bastante permissivo. Afirma-se com frequência que em termos de crenças e superstições o país é bastante fértil. Qualquer doutrina que nele penetre, floresce e dá frutos. Como se aqui, em se plantando, tudo desse. Ocorre que, para o caso do espiritismo, uma análise mais cuidadosa, que afasta essas afirmações do senso comum, nos revela a complexidade que podem tomar certas conjunturas históricas. Vejamos.
O Brasil foi, na década de 1860 – como outros países da América e da Europa –, um dos portos de chegada de O livro dos espíritos. E não poderia ter sido de outra forma, já que naquela época pessoas e ideias francesas influenciavam fortemente o pensamento social, as artes e até a política brasileira.
A colônia de franceses da capital do Império, Rio de Janeiro, foi um dos primeiros núcleos de repercussão das ideias espíritas. Jornalistas, comerciantes e professores franceses agrupavam-se em torno do Courrier du Brésil, cuja redação tinha uma linha claramente anticlerical. Mas, ao contrário do que hoje vemos, naquele momento o espiritismo não surgia como uma nova opção religiosa. Ele estava entrelaçado ali com as modernas tendências políticas e filosóficas, em particular com o socialismo.
Socialismo e reencarnação
A explicação das desigualdades sociais era relacionada às diversas existências da alma (reencarnações) e nesse grupo mesclavam-se às leituras de Kardec as leituras das obras dos “socialistas utópicos”. Embora composta de pessoas com certo prestígio social, econômico e cultural – característica que poderia ter favorecido a expansão do espiritismo –, a colônia francesa restringiu as práticas espíritas a algumas reuniões particulares, limitando sua circulação naquele momento. Aliás, era um tanto quanto inusitada para a sociedade brasileira da época a discussão sobre socialismo e reencarnação. O socialismo não tinha repercussão no debate político-ideológico do Brasil do século XIX, muito mais preocupado com questões políticas e jurídicas como o abolicionismo e o republicanismo, do que com a possibilidade de uma revolução socialista.
Depois de haver experimentado certo desenvolvimento em Salvador, Bahia, com os esforços do jornalista Luiz Olympio Telles de Menezes (1828-1893) – a quem coube a fundação da primeira instituição espírita, o Grêmio de Estudos Espiriticos, em 1865, e do primeiro periódico espírita, O Écho d’Além-Túmulo, em 1869 –, o espiritismo voltaria a atuar com mais vigor na corte, graças ao empenho de alguns de seus adeptos.
Como se tratava de uma doutrina que dialogava com as três formas clássicas do conhecimento – filosofia, ciência e religião –, era de esperar que fosse absorvida e desenvolvida em três frentes distintas. E foi quase isso o que aconteceu no Brasil. As diferentes formas de interpretação induziram à formação de diversas associações, num total de 35 somente na capital em fins do século XIX. Elas eram frequentadas por advogados, jornalistas, professores e médicos. Longe de um convívio pacífico, os espíritas se viram naquela época cindidos em basicamente duas vertentes: os “espíritas religiosos” e os “espíritas científicos” – dois polos responsáveis pela disputa que acabou definindo o estatuto do espiritismo no Brasil.
Como unificar os espíritas?
Então disperso, o movimento espírita precisava unificar-se, caso contrário seria difícil a sua introdução legítima na sociedade brasileira. Mas necessitava antes de tudo se definir. Foram várias as tentativas de unificação por que passaram os agrupamentos espíritas, e nesse processo conseguiu se consolidar em 1884 a Federação Espírita Brasileira (FEB), uma associação centralizadora que pretendia: (1) regular as ideias espíritas; (2) representar todas as agremiações e (3) ser a instituição oficial de divulgação no país.
A maior parte dos integrantes da FEB, inclusive seus presidentes, manifestava profundo apreço pelo lado religioso da doutrina, ou por suas implicações morais. Tidos então como os representantes do “espiritismo religioso”, foram eles os que tiveram mais forças e acabaram ganhando, diante dos demais grupos, a primazia de dizer o que era (ou não) espiritismo, defendendo-o cada vez mais como uma opção religiosa no leque de religiões no Brasil. No entanto, apesar de essa dinâmica interna ter tido fundamental importância para o processo de acentuação do caráter religioso do espiritismo, não se podem ignorar as influências dos fatores externos ao movimento espírita. Em 1890, com o fim do Império, o Brasil tornava-se então uma República laica. Diante desse novo quadro, vale a pena ressaltar que as ações da FEB seguiram cada vez mais no sentido de insistir no lado religioso da doutrina, por três motivos principais: primeiro porque o grupo dos “espíritas religiosos” começava a ter mais forças dentro do movimento espírita; segundo porque agora o espiritismo poderia existir legalmente como religião; e terceiro, porque era necessário defendê-lo diante de um dos seus “inimigos”: o Código Penal.
Na incipiente República brasileira, principalmente na primeira década de 1890-1900, e em especial na sua capital e nas grandes cidades, surgiam em diferentes níveis as preocupações de conter, controlar, mapear e classificar agentes, ações e disposições sociais, preocupações ligadas ao objetivo do novo governo de instituir uma ordem, tão necessária para o nosso progresso. Na profusão dos processos de criminalização, vários espíritas foram presos a partir de 1891, condenados por diversas práticas – “espíritas”, “mágicas”, “adivinhatórias” – em virtude de suas pretensões curandeirísticas representarem um perigo para a “saúde pública” e para a “credulidade pública”. Isso ocorria porque os espíritas, não só os ligados à FEB, arrogavam-se o direito de curar os males físicos e espirituais pela manipulação de passes magnéticos, águas fluidificadas e de remédios homeopáticos, práticas que iam frontalmente de encontro ao processo de autonomização da esfera médica, que buscava, naquele exato momento, garantir legalmente o monopólio da cura.
Pauta de discussões em diversos domínios sociais, o espiritismo começava a ser visto como “heresia” pelos católicos, “charlatanismo” pelos cientistas, “crime” pelo poder Judiciário e “exercício ilegal da medicina” pelos médicos. Em meio a esse quadro de animosidades, alguns personagens se destacaram na defesa de suas concepções. Entre os espíritas atuantes de fins do século XIX – muitos deles políticos, professores, advogados, jornalistas e médicos –, encontrava-se o dr. Adolfo Bezerra de Menezes (1831-1900), um dos primeiros presidentes da FEB. Embora não ignorasse os lados científico e filosófico da doutrina espírita, foram sem dúvida os aspectos morais e religiosos que mais lhe chamaram atenção, talvez pelo fato de ter concluído que somente como religião o espiritismo poderia não apenas sobreviver, mas sobreviver de forma legal e legítima no Brasil.
Espiritismo e cura
Coube então a Bezerra de Menezes e a seus colegas da FEB reforçar nas obras de Allan Kardec determinados aspectos em detrimento de outros, buscando encadeá-los de maneira a lhes dar ordenação e coerência segundo certas predisposições de seu grupo, fortemente interessado nos aspectos religiosos do espiritismo. Não é à toa que o médico cearense recebeu o apelido no meio espírita de “Kardec brasileiro”, justamente pelo fato de ter “codificado” a doutrina no Brasil, imprimindo-lhe características específicas. Nesse sentido, Bezerra de Menezes e amigos foram os responsáveis por dar grande ênfase a dois pontos correlacionados se tornaram centrais na “doutrina espírita brasileira”: ressaltaram, de um lado, a divisa “fora da caridade não há salvação” e, de outro, a relação entre espiritismo e cura.
Uma vez erigidos esses dois pilares, Bezerra de Menezes e amigos criaram na FEB uma entidade denominada “Serviço de Assistência aos Necessitados”, núcleo de extrema importância para a consolidação e expansão do espiritismo e referência para as instituições espíritas fundadas posteriormente. Desde então, todos os centros acabariam optando por ter algum tipo de prática assistencial.
Interessadas no restabelecimento físico do “próximo”, o Serviço de Assistência funcionava como uma espécie de “hospital espiritual” onde os médiuns, formados ou não em medicina e guiados pelos seus “espíritos protetores”, receitavam medicamentos homeopáticos e tratamentos de “passes” aos necessitados, fossem do corpo, fossem da alma. A oferta da cura, além de ser encarada pelos espíritas como uma das possíveis formas de praticar a caridade, fazia parte de todo um arcabouço teórico-doutrinário pensado e desenvolvido pelos primeiros adeptos brasileiros. Os espíritas tinham como postulado a ideia de que às do corpo estão estreitamente ligadas às enfermidades do espírito. Assim, curar um implicava curar o outro, e vice-versa. Mas era justamente esse tipo de prática que incidia no Código Penal de 1891, principalmente em seus artigos 156, 157 e 158, que previam penas às práticas tidas como mágicas, ou às práticas de oferta da cura por pessoas não diplomadas.
Nesse sentido, o que os espíritas buscaram fazer foi mostrar ao Estado brasileiro e à sua polícia que os médiuns “receitistas” e “passistas” nada mais faziam do que professar a sua religião. Promoviam um auxílio caridoso, pautado em toda uma concepção de crença espírita. Era, portanto, uma ação religiosamente orientada. E o mais importante: ofertada de modo gratuito, sem fins lucrativos.
Enfatizar os aspectos religioso e caritativo da assistência foi um dos meios mais eficazes que os espíritas encontraram para escapar do Código Penal, que previa a redução da pena ou até mesmo a anulação dos processos que envolvessem práticas mágico-religiosas-curativas desde que exercidas sem fins lucrativos. E, de lambujem, os espíritas conseguiram, ainda que lentamente, afastar as pechas de charlatães e/ou exploradores da credulidade pública.
Construído no bojo do processo mais amplo e inclusivo de pluralização confessional por que passava o campo religioso brasileiro, o espiritismo de fins do século XIX não poderia atuar senão reforçando o seu caráter religioso. Era a escolha de uma via de legitimação com um amparo legal, então sentido como premente para a sua existência em solo brasileiro. Esse processo de transmutação do espiritismo em religião não consistia simplesmente na escolha de uma forma possível, ensejada pelo sistema conceitual da doutrina espírita, para definir aquele conjunto de práticas e concepções: foi o meio pelo qual uma possível interpretação conseguiu ser imposta e aceita – através de muitos esforços práticos e intelectuais – como legítima, ortodoxa e hegemônica em face das demais concepções. Venceu a parada o “espiritismo religião”.
“Os que não aprendem com a História, vão repetir sempre os mesmos erros”.

Célia da Graça Arribas, doutora em sociologia pela USP, atua nas áreas de teoria sociológica e sociologia da religião

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